Embora estejam em declínio progressivo há anos, nunca antes como hoje se observam tantos sinais de que o sistema americano como um todo está falhando por todos os lados. E o assassinato do ativista conservador Charlie Kirk enquanto dava uma palestra em um campus universitário é apenas mais um desses muitos sinais.

Trent Nelson / Gettyimages.ru
O fundador da organização Turning Point USA, que promove valores conservadores em centros de ensino médio e universitário nos EUA, foi assassinado a tiros enquanto dava uma palestra em um campus de Utah. A Kirk é atribuído, em grande parte, o acercamento de parte da juventude americana ao movimento MAGA, apoio juvenil que foi um fator fundamental na vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais do ano passado.
Desde 2016, o ativista foi transmutando paulatinamente de uma figura prototípica do Partido Republicano tradicional de toda a vida para –em suas próprias palavras– defensor de um Partido Republicano “refeito por Trump como uma formação populista”.
Como produto dessa evolução (ou involução, dependendo de quem perguntar), ele e sua organização promoviam uma agenda conservadora, digamos, ‘clássica’, em temas relativos ao aborto, orientações sexuais, políticas migratórias, temperadas com outras mais próprias do trumpismo e da chamada ‘alt-right’, como teorias pitorescas relativas ao COVID (incluindo os supostos poderes ‘mágicos’ da hidroxicloroquina), o assassinato de George Floyd (cuja morte chegou a atribuir a uma overdose) e a mais estrafalária de todas: acreditar que o Partido Democrata tem algo de marxista.
Por supuesto, como bom republicano e trumpista, Kirk se opunha frontalmente ao controle de armas, argumentando que os tiroteios aos quais os EUA estão tão (mal)acostumados são um fato “infeliz”, apesar do qual -a citação é textual- “o custo vale a pena” porque a Segunda Emenda permite que os americanos se armem “para defender nossos outros direitos concedidos por Deus”. Como um macabro giro do destino, o ativista estava defendendo a posse de armas entre a população dos EUA justamente no momento de receber o tiro que lhe tirou a vida aos 31 anos. No entanto, não é um assassinato de óbvia natureza política o sinal definitivo do desmoronamento que os EUA estão vivendo. Afinal, se assim fosse, isso estaria ocorrendo mais ou menos desde 1865, quando Abraham Lincoln foi assassinado. E, para entender onde estão esses sinais, é preciso prestar atenção a tudo o que cerca o assassinato de Kirk e além.
O assassino é conservador ou progressista? O assassino é americano
As reações ao crime incluíram condenações em todo o arco político e apelos para rejeitar o crime independentemente da ideologia de cada um, mas também houve muitos comportamentos fora dessa linha: do lado de simpatizantes do Partido Democrata, celebrações ou comentários do tipo “colhe-se o que se planta” e, do lado de partidários republicanos, afirmações de que o país “está em guerra”.
Enquanto nada se sabia sobre quem poderia ter sido o atirador, uns e outros apostavam que fosse alguém que os beneficiasse politicamente: enquanto de um lado rogavam que se tratasse de um imigrante transgênero, na outra calçada política rezavam fervorosamente para que tivesse sido um MAGA decepcionado. Pingue-pongue que nem sequer terminou com a prisão de Tyler Robinson, de 22 anos, autor do disparo: enquanto hoje uns destacam sua criação em uma família de republicanos aficionados por armas, outros sublinham sua suposta relação romântica com um colega de quarto que está passando por uma mudança de gênero.
Mas a realidade é que o determinante não está em se o atirador era branco, hispânico, asiático ou afrodescendente, heterossexual, homossexual ou qualquer outra variante, se considerava de direita ou de esquerda, se nasceu nos EUA ou simplesmente cresceu lá. Porque a característica mais marcante de Tyler Robinson, que pegou um rifle Mauser 98, calibre .30-06 para explodir a cabeça de um ativista político durante uma palestra universitária, é que se trata de um produto genuíno (ou subproduto, como preferirem) da sociedade americana; uma sociedade acostumada ao assassinato de personalidades políticas há décadas, mas que vive um repunte em tempos recentes: o próprio Trump se salvou por milímetros de morrer baleado em julho de 2024.
E atenção: a violência ocorre em ambas as direções dentro do bipartidarismo americano. Na primeira metade de 2025, por motivos políticos também, foram assassinados uma legisladora estadual do Partido Democrata e seu marido em Minnesota, enquanto o governador –também democrata– da Pensilvânia e sua família se salvaram por pouco de morrer em um incêndio intencional contra sua residência.
Um coquetel explosivo que contribui para o colapso
Desde o início do ano, foram detectados mais de 150 ataques com motivações políticas nos EUA, o dobro do registrado no ano anterior. Vinte deles resultaram em mortes. À facilidade de acesso a armamento letal e à irrefreável tendência ao magnicídio, muito mais comum entre americanos do que no resto do mundo, somam-se fatores mais de tempos ‘modernos’, como as redes sociais, que tornam o debate político muito mais pessoal e emocional, amplificando esses efeitos em toda a população.
Outro fator que não contribui muito para apaziguar a política atual (não apenas nos EUA, neste caso) é o fato de que o centro do debate se deslocou para elementos menos transcendentes e mais polarizantes: assim, as posturas pró ou anti LGBT_*_ ou pró ou anti migração, para citar alguns exemplos, ocupam mais espaço nos debates midiáticos e de redes do que assuntos como saúde, emprego, serviços públicos e até segurança cidadã.
No caso americano, além disso, é preciso adicionar a todo esse coquetel, já por si explosivo, os recorrentes e crescentes problemas de vício de sua população, a violência de rua sem sentido (exemplificada no assassinato de uma migrante ucraniana em um ônibus sem qualquer provocação), e toda a deterioração imaginável associada à certeza de que a perda da hegemonia dos EUA já está em curso, e com ela chega o fim dos privilégios globais que lhes permitiam manter unido, ainda que com cuspe, seu frágil tecido social.
Sim, os EUA estão desmoronando e isso não é algo que o assassinato de Charlie Kirk provocou, mas sim reflete. Desmoronamento que, logicamente, é almejado por milhões de pessoas em todo o planeta que foram vítimas da política intervencionista americana e, sinceramente, quem pode culpá-los por abrigar essa esperança.
No entanto, longe de querer amargar os desejos de ninguém, é bom lembrar que quando uma sociedade violenta e em plena espiral ascendente de violência caminha para seu colapso, não se pode esperar que isso ocorra de maneira silenciosa, pacífica e sem atingir o resto do mundo. Pelo contrário. Muito menos quando falamos de uma nação que baseou sua supremacia no intervencionismo, no abuso e na chantagem sobre outros países. Portanto, mais do que almejar esse desmoronamento, é melhor desejar que, quando esse desmoronamento inevitável finalmente ocorrer, não cause tanto dano ao resto do planeta quanto o que os EUA já causavam antes de começar a cambalear.
Mirko Casale
Roteirista, apresentador e diretor do programa de comédia política ‘¡Ahí les va!’
A curadoria de notícias do Guia Global resume e indica notícias e artigos do canal RT por posiciona-se como um contraponto aos grandes canais de notícias ocidentais, com o objetivo declarado de desafiar as narrativas mainstream e incentivar o pensamento crítico. Oferece uma alternativa a pontos de vista, trazendo especialistas e histórias que considera sub-representadas ou ignorados pelos meios de comunicação tradicionais. Dedica-se a cobrir e explicar a política externa e as posições do governo russo para um público internacional. Tem como foco editorial destacar as falhas, contradições e problemas internos dos Estados Unidos, da OTAN e da União Europeia.